domingo, 7 de fevereiro de 2010

OS MILITARES

Erro! O nome de arquivo não foi especificado.

O texto aborda com propriedade o sentimento de patriotismo,que,com exceção dos militares,a maioria da população brasileira quase não possui,além de ter uma memória quase inexistente dos atos e fatos que constituem a nossa rica História do Brasil.




REPASSO

Olavo de Carvalho Filósofo e Cientista Político

Como todos os meninos da escola na minha época, eu não podia cantar o
Hino Nacional ou prestar um juramento à bandeira sem sentir que estava
participando de uma pantomima. A gente ria às escondidas, fazia piadas,
compunha paródias escabrosas.

Os símbolos do patriotismo, para nós, eram o supra-sumo da babaquice, só
igualado, de longe, pelos ritos da Igreja Católica, também abundantemente
ridicularizados e parodiados entre a molecada, não raro com a cumplicidade
dos pais. Os professores nos repreendiam em público, mas, em segredo,
participavam da gozação geral.

Cresci, entrei no jornalismo e no Partido Comunista, freqüentei rodas de
intelectuais.

Fui parar longe da atmosfera da minha infância, mas, nesse ponto, o
ambiente não mudou em nada: o desprezo, a chacota dos símbolos nacionais
eram idênticos entre a gente letrada e a turminha do bairro.

Na verdade, eram até piores, porque vinham reforçados pelo prestígio de
atitudes cultas e esclarecidas. Graciliano Ramos, o grande Graciliano
Ramos, glória do Partidão, não escrevera que o Hino era "uma estupidez"?

Mais tarde, quando conheci os EUA, levei um choque. Tudo aquilo que para
nós era uma palhaçada hipócrita os americanos levavam infinitamente a
sério.

Eles eram sinceramente patriotas, tinham um autêntico sentimento de
pertinência, de uma raiz histórica que se prolongava nos frutos do
presente, e viam os símbolos nacionais não como um convencionalismo
oficial, mas como uma expressão materializada desse sentimento.

E não imaginem que isso tivesse algo a ver com riqueza e bem-estar
social. Mesmo pobres e discriminados se sentiam profundamente americanos,
orgulhosamente americanos, e, em vez de ter raiva da pátria porque ela os
tratava mal, consideravam que os seus problemas eram causados apenas por
maus políticos que traíam os ideais americanos.

Correspondi-me durante anos com uma moça negra de Birmingham, Alabama.
Ali não era bem o lugar para uma moça negra se sentir muito à vontade, não
é mesmo?

Mas se vocês vissem com que afeição, com que entusiasmo ela falava do seu
país! E não só do seu país: também da sua igreja, da sua Bíblia, do seu
Jesus. Em nenhum momento a lembrança do racismo parecia macular em nada a
imagem que ela tinha da sua pátria.

A América não tinha culpa de nada. A América era grande, bela, generosa.
A maldade de uns quantos não podia afetar isso em nada. Ouvi-la falar de
matava de vergonha.

Se alguém no Brasil dissesse essas coisas, seria exposto imediatamente ao
ridículo, expelido do ambiente como um idiota-mor ou condenado como
eacionário um integralista, um fascista.

Só dois grupos, neste país, falavam do Brasil no tom afetuoso e confiante
com que os americanos falavam da América.

O primeiro era os imigrantes: russos, húngaros, poloneses, judeus,
alemães, romenos. Tinham escapado ao terror e à miséria de uma das grandes
tiranias do século (alguns, das duas), e proclamavam, sem sombra de
fingimento: "Este é um país abençoado!" Ouvindo-nos falar mal da nossa
terra, protestavam: "Vocês são doidos.

Não sabem o que têm nas mãos".Eles tinham visto coisas que nós não
imaginávamos, mediam a vida humana numa outra escala, para nós
aparentemente inacessível. Falávamos de miséria, eles respondiam: "Vocês
não sabem o que é miséria".Falávamos de ditadura, eles riam: "Vocês não
sabem o que é ditadura".

No começo isso me ofendia. "Eles acham que sabem tudo", dizia com meus
botões. Foi preciso que eu estudasse muito, vivesse muito, viajasse muito,
para entender que tinha razão, mais razão do que então eu poderia
imaginar.

A partir do momento em que entendi isso, tornei-me tão esquisito, para
meus conterrâneos como um estoniano ou húngaro, com sua fala embrulhada e
seu inexplicável entusiasmo pelo Brasil, eram então esquisitos para mim.

Digo, por exemplo, que um país onde um mendigo pode comer diariamente um
franco assado por dois dólares é um país abençoado, e as pessoas querem me
bater.

Não imaginam o que possa ter sido sonhar com um frango na Rússia, na
Alemanha, na Polônia, e alimentar-se de frangos oníricos.

Elas acreditam que em Cuba os frangos dão em árvores e são propriedade
pública. Aqueles velhos imigrantes tinham razão: o brasileiro está fora do
mundo, tem uma medida errada da realidade.

O outro grupo onde encontrei um patriotismo autêntico foi aquele que, sem
conhecê-lo, sem saber nada sobre ele, exceto o que ouvia de seus inimigos,
mais temi e abominei durante duas décadas: os militares.

Caí no meio deles por mero acaso, por ocasião de um serviço editorial que
prestava para a Odebrecht que me pôs temporariamente de editor de texto de
um volumoso tratado "O Exército na História do Brasil".

A primeira coisa que me impressionou entre os militares foi sua
preocupação sincera, quase obsessiva, com os destinos do Brasil.

Eles discutiam os problemas brasileiros como quem tivesse em mãos a
responsabilidade pessoal de resolvê-los. Quem os ouvisse sem saber que
eram militares teriam a impressão de estar diante de candidatos em plena
campanha eleitoral, lutando por seus programas de governo e esperando
subir nas pesquisas junto com a aprovação pública de suas propostas.

Quando me ocorreu que nenhum daqueles homens tinha outra expectativa ou
possibilidade de ascensão social senão as promoções que automaticamente
lhes viriam no quadro de carreira, no cume das quais nada mais os esperava
senão a metade de um salário de jornalista médio, percebi que seu
interesse pelas questões nacionais era totalmente independente da busca de
qualquer vantagem pessoal.

Eles simplesmente eram patriotas, tinham o amor ao território, ao passado
histórico, à identidade cultural, ao patrimônio do país, e consideravam
que era do seu dever lutar por essas coisas, mesmo seguros de que nada
ganhariam com isso senão antipatias e gozações.

Do mesmo modo, viam os símbolos nacionais - o hino, a bandeira, as armas
da República - como condensações materiais dos valores que defendiam e do
sentido de vida que tinham escolhido. Eles eram, enfim, "americanos" na
sua maneira de amar a pátria sem inibições.

Procurando explicar as razões desse fenômeno, o próprio texto no qual
vinha trabalhando me forneceu uma pista.

O Brasil nascera como entendida histórica na Batalha dos Guararapes,
expandira-se e consolidara sua unidade territorial ao sabor de campanhas
militares e alcançara pela primeira vez, um sentimento de unidade
autoconsciente por ocasião da Guerra do Paraguai, uma onda de entusiasmo
patriótico hoje dificilmente imaginável.

Ora, que é o amor à pátria, quando autêntico e não convencional, senão a
recordação de uma epopéia vivida em comum?

Na sociedade civil, a memória dos feitos históricos perdera-se,
dissolvida sob o impacto de revoluções e golpes de Estado, das
modernizações desaculturantes, das modas avassaladoras, da imigração, das
revoluções psicológicas introduzidas pela mídia.

Só os militares, por força da continuidade imutável das suas instituições
e do seu modo de existência, haviam conservado a memória viva da
construção nacional.

O que para os outros eram datas e nomes em livros didáticos de uma
chatice sem par, para eles era a sua própria história, a herança de lutas,
sofrimentos e vitórias compartilhadas, o terreno de onde brotava o sentido de suas vidas.

O sentimento de "Brasil", que para os outros era uma excitação epidérmica
somente renovada por ocasião do carnaval ou de jogos de futebol (e já
houve até quem pretendesse construir sobre essa base lúdica um grotesco
simulacro de identidade nacional), era para eles o alimento diário, a
consciência permanentemente renovada dos elos entre passado, presente e
futuro.

Só os militares eram patriotas porque só os militares tinham consciência
da história da pátria como sua história pessoal.

Daí também outra diferença. A sociedade civil, desconjuntada e atomizada,
é anormalmente vulnerável a mutações psicológicas que induzidas do
Exterior ou forçadas por grupos de ambiciosos intelectuais ativistas
apagam do dia para a noite a memória dos acontecimentos históricos e
falseiam por completo a sua imagem do passado.

De uma geração para outra, os registros desaparecem, o rosto dos
personagens é alterado, o sentido todo do conjunto se perde para ser
substituído, do dia para a noite, pela fantasia inventada que se adapte
melhor aos novos padrões de verossimilhança, impostos pela repetição de
slogans e frases-feitas.

Toda a diferença entre o que se lê hoje na mídia sobre o regime militar e
os fatos revelados no site de Ternuma vem disso. Até o começo da década de
80, nenhum brasileiro, por mais esquerdista que fosse, ignorava que havia
uma revolução comunista em curso, que essa revolução sempre tivera
respaldo estratégico e financeiro de Cuba e da URSS, que ele havia
atravessado maus bocados em 1964 e tentara se rearticular mediante as
guerrilhas, sendo novamente derrotada.

Mesmo o mais hipócrita dos comunistas, discursando em favor da
"democracia", sabia perfeitamente a nuance discretamente subentendida
nessa palavra, isto é, sabia que não lutava por democracia nenhuma, mas
pelo comunismo cubano e soviético, segundo as diretrizes da Conferência
Tricontinental de Havana.

Passada uma geração tudo isso se apagou. A juventude, hoje, acredita
piamente que não havia revolução comunista nenhuma, que o governo João
Goulart era apenas um governo normal eleito constitucionalmente, que os
terroristas da década de 70 eram patriotas brasileiros lutando pela
liberdade e pela democracia.

No Brasil, a multidão não tem memória própria. Sua vida é muito
descontínua, cortada por súbitas mutações modernizadoras, não compensadas
por nenhum daqueles fatores de continuidade que preservava a identidade
histórica do meio militar.

Não há cultura doméstica, tradições nacionais, símbolos de continuidade
familiar. A memória coletiva está inteiramente a mercê de duas forças
estranhas: a mídia e o sistema nacional de ensino.

Quem dominar esses dois canais mudará o passado, falseará o presente e
colocará o povo no rumo de um futuro fictício.

Por isso o site de Ternuma é algo mais que a reconstituição de detalhes
omitidos pela mídia.

É uma contribuição preciosa à reconquista da verdadeira perspectiva
histórica de conjunto, roubada da memória brasileira por manipuladores
maquiavélicos, oportunistas levianos e tagarelas sem consciência.

Perguntam-me se essa contribuição vem dos militares? Bem, de quem mais
poderia vir?

Autor
Olavo de Carvalho

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